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DNA e Genética Ocular: Condições Oculares Hereditárias em Famílias

  • Foto do escritor: Alexandre Netto
    Alexandre Netto
  • há 3 dias
  • 6 min de leitura

A oftalmologia moderna reconhece cada vez mais a importância dos fatores genéticos no desenvolvimento de diversas condições oculares.


O mapeamento do genoma humano e os avanços nas técnicas de diagnóstico molecular têm permitido uma compreensão mais profunda da base genética das doenças oculares. Este artigo explora as principais condições oculares hereditárias que podem ser diagnosticadas em múltiplos membros de uma mesma família, destacando os mecanismos de transmissão genética, manifestações clínicas e abordagens diagnósticas atuais.


Bases da Hereditariedade Ocular


A transmissão de características genéticas oculares segue padrões estabelecidos de hereditariedade mendeliana e não-mendeliana. Os principais padrões de herança incluem:


1. Autossômica dominante: Um único alelo mutante é suficiente para causar a doença, resultando em um padrão vertical de transmissão com aproximadamente 50% de chance de passar a condição aos descendentes.


2. Autossômica recessiva: Requer dois alelos mutantes para manifestar a doença, frequentemente observada em famílias com casamentos consanguíneos ou em populações isoladas.


3. Ligada ao cromossomo X: Genes localizados no cromossomo X afetam predominantemente homens, enquanto mulheres podem ser portadoras assintomáticas.


4. Herança mitocondrial: Transmitida exclusivamente pela linhagem materna, afetando estruturas oculares com alta demanda energética.


5. Herança multifatorial: Interação de múltiplos genes e fatores ambientais, resultando em expressividade variável e penetrância incompleta.


Principais Condições Oculares Hereditárias


1. Retinite Pigmentar


A retinite pigmentar (RP) representa um grupo heterogêneo de distrofias retinianas hereditárias caracterizadas pela degeneração progressiva dos fotorreceptores. Com prevalência estimada em 1:4.000 pessoas, a RP pode ser transmitida por todos os padrões mendelianos de herança.


Genética: Mais de 100 genes já foram identificados como causadores de RP, incluindo o gene da rodopsina (RHO), o gene RPE65 e o gene PRPH2.


Manifestações clínicas: Cegueira noturna inicial, seguida por perda progressiva da visão periférica, formando o clássico "campo visual em túnel". O exame de fundo de olho revela atenuação vascular, palidez do disco óptico e depósitos pigmentares em forma de espículas ósseas.


Variações familiares: Uma mesma família pode apresentar diferentes manifestações clínicas, mesmo portando a mesma mutação genética, fenômeno conhecido como expressividade variável.


2. Glaucoma Congênito e de Ângulo Aberto


O glaucoma, caracterizado pelo dano progressivo ao nervo óptico, frequentemente tem componentes hereditários importantes.


Genética: O glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) está associado a mutações nos genes MYOC, OPTN e CYP1B1, enquanto o glaucoma congênito frequentemente envolve mutações no gene CYP1B1.


Padrão de herança: O GPAA geralmente segue um padrão autossômico dominante com penetrância incompleta, enquanto o glaucoma congênito é tipicamente autossômico recessivo.


Características familiares: Famílias com histórico de glaucoma frequentemente demonstram antecipação genética, com manifestações mais precoces e graves nas gerações subsequentes.


3. Catarata Congênita


As cataratas congênitas representam uma causa significativa de deficiência visual infantil, com aproximadamente 30% dos casos tendo origem genética.


Genética: Mutações em genes que codificam proteínas cristalinas (CRYAA, CRYAB, CRYBB2) e fatores de transcrição (PAX6, PITX3) são frequentemente responsáveis.


Padrão de herança: Predominantemente autossômico dominante, embora padrões recessivos e ligados ao X também sejam observados.


Variabilidade clínica: A morfologia, localização e progressão da opacidade lenticular podem variar consideravelmente dentro da mesma família, mesmo com a mesma mutação genética.


4. Distrofias Corneanas


As distrofias corneanas constituem um grupo de condições caracterizadas por depósitos anormais na córnea, frequentemente com forte componente hereditário.


Genética: Distrofia de Fuchs associada a mutações no gene COL8A2, distrofia lattice ao gene TGFBI, e distrofia macular endotelial ao gene CHST6.


Padrão de herança: A maioria segue padrão autossômico dominante, com exceção da distrofia macular (recessiva).


Manifestações familiares: Exames de biomicroscopia podem revelar alterações subclínicas em membros da família aparentemente não afetados, indicando penetrância variável.


5. Erros Refrativos Hereditários


A miopia, hipermetropia e astigmatismo têm componentes genéticos significativos, especialmente em suas formas mais extremas.


Genética: A miopia patológica está associada a genes como MYP1-18, enquanto a hipermetropia severa envolve genes como MFRP.


Padrão de herança: Principalmente multifatorial, com influência de múltiplos genes e fatores ambientais.


Agregação familiar: Estudos em gêmeos demonstram concordância significativamente maior em gêmeos monozigóticos comparados aos dizigóticos, confirmando a base genética substancial.


6. Doenças Maculares Hereditárias


Doença de Stargardt


A doença de Stargardt é a forma mais comum de degeneração macular juvenil hereditária.


Genética: Causada principalmente por mutações no gene ABCA4, que codifica uma proteína transportadora envolvida no ciclo visual.


Padrão de herança: Predominantemente autossômico recessivo.


Manifestações clínicas: Perda progressiva da visão central, com início típico entre 6 e 20 anos de idade, acompanhada por alterações características do epitélio pigmentar da retina e acúmulo de lipofuscina.


Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI)


Embora multifatorial, a DMRI tem componente genético significativo.


Genética: Variantes nos genes CFH, ARMS2/HTRA1 e C3 conferem risco aumentado.


Padrão de herança: Complexo, com interação entre múltiplos genes de suscetibilidade e fatores ambientais.


Risco familiar: Parentes de primeiro grau de indivíduos afetados têm risco 3-4 vezes maior de desenvolver a doença.


7. Doenças Sistêmicas com Manifestações Oculares


Diversas síndromes genéticas apresentam manifestações oculares características que podem ser a primeira pista para o diagnóstico:


Síndrome de Marfan


Genética: Mutações no gene FBN1 que codifica a fibrilina-1.


Manifestações oculares: Subluxação do cristalino (ectopia lentis), miopia alta e predisposição ao descolamento de retina.


Neurofibromatose Tipo 1


Genética: Mutações no gene NF1 que codifica a neurofibromina.


Manifestações oculares: Nódulos de Lisch na íris, gliomas do nervo óptico e neurofibromas palpebrais.


Abordagem Diagnóstica na Prática Clínica


Anamnese Familiar Detalhada


A elaboração de um heredograma completo, cobrindo pelo menos três gerações, é essencial para identificar padrões de herança. Perguntas específicas sobre sintomas visuais em familiares, mesmo quando aparentemente não relacionados à queixa principal, podem revelar condições subclínicas ou manifestações variáveis da mesma doença genética.


Exame Oftalmológico dos Familiares


O exame oftalmológico de membros da família, mesmo assintomáticos, pode revelar sinais precoces ou subclínicos de doenças genéticas. Em famílias com alta suspeita de condições hereditárias, exames específicos como tomografia de coerência óptica (OCT), angiografia fluoresceínica ou eletrorretinograma (ERG) podem ser indicados.


Testes Genéticos Moleculares


Os avanços tecnológicos têm tornado os testes genéticos mais acessíveis e precisos:


1. Sequenciamento de nova geração (NGS): Permite a análise simultânea de múltiplos genes associados a fenótipos oculares específicos.


2. Painéis genéticos direcionados: Análise de conjuntos específicos de genes associados a determinadas condições oculares (ex.: painel de genes de retinites pigmentares).


3. Sequenciamento completo do exoma/genoma: Útil em casos onde painéis direcionados não identificam a causa genética.


4. Análise de CNVs (Copy Number Variations): Identifica deleções ou duplicações genômicas não detectáveis por sequenciamento tradicional.


Aconselhamento Genético


O aconselhamento genético é fundamental para famílias com doenças oculares hereditárias, fornecendo:


1. Informações sobre o padrão de herança e risco de recorrência

2. Orientações sobre opções reprodutivas, incluindo diagnóstico pré-implantacional

3. Suporte psicológico para lidar com o impacto do diagnóstico genético

4. Conexão com grupos de apoio e recursos comunitários


Perspectivas Terapêuticas


Os avanços na compreensão da genética ocular têm aberto novas possibilidades terapêuticas:


Terapia Gênica


A aprovação do Luxturna® (voretigene neparvovec) para o tratamento da amaurose congênita de Leber e retinite pigmentar associadas a mutações no gene RPE65 representa um marco na oftalmologia genética. Diversos outros tratamentos estão em desenvolvimento para diferentes formas de doenças retinianas hereditárias.


Terapias Farmacológicas Personalizadas


Medicamentos desenvolvidos para atuar em vias metabólicas específicas afetadas por determinadas mutações genéticas representam uma abordagem promissora para condições anteriormente intratáveis.


Medicina de Precisão


A caracterização genética precisa permite estratificar pacientes em subgrupos que podem responder diferentemente a determinadas intervenções, otimizando o manejo terapêutico.


Conclusão


A compreensão dos aspectos genéticos das doenças oculares representa uma revolução na oftalmologia moderna. A identificação de padrões familiares de doenças oculares, associada a técnicas diagnósticas moleculares avançadas, permite não apenas o diagnóstico precoce, mas também a implementação de estratégias preventivas e terapêuticas personalizadas.


O oftalmologista contemporâneo deve estar preparado para reconhecer padrões de herança, solicitar testes genéticos apropriados e fornecer aconselhamento adequado às famílias afetadas. A integração entre a genética e a oftalmologia clínica promete transformar o manejo das doenças oculares, oferecendo esperança para famílias que convivem com condições até recentemente consideradas intratáveis.


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